Maria Berenice Dias[1]
Não é somente a retrospectiva da própria vida que fazemos ao final de cada ano.
Quem tem comprometimento na construção de uma justiça menos formalista, menos conservadora e mais atenta à realidade da vida, cabe fazer o mesmo balanço.
Aliás, este sempre foi o compromisso do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que há um quarto de século não faz outra coisa a não ser buscar a inserir os vínculos de afetividade no âmbito da tutela jurídica, gerando direitos e deveres.
Sob este aspecto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu um grande passo neste ano que ora finda. Desdobrou o reconhecimento dos vínculos parentais para além da relação paterno-filial. Ao admitir a possibilidade de constituição um vínculo de fraternidade socioafetiva entre irmãos, esgarçou o conceito de parentesco, enlaçando mais pessoas sob o manto de tutela do Direito das Famílias.[2]
Outro belo avanço que se avizinha, é o questionamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF), da inconstitucionalidade do dispositivo da lei civil que, sem qualquer justificativa, impõe o regime da separação de bens quando um dos cônjuges tem mais de 70 anos de idade.[3]
Admitida a repercussão geral foi firmada tese sobre o regime de bens aplicável tanto no casamento como na união estável dos maiores de setenta anos.[4] Ressaltou o Ministro Relator Luís Roberto Barroso a relevância da matéria. Do ponto de vista social, a definição do regime de bens produz impactos diretos na organização da vida da sociedade brasileira. Sob o aspecto jurídico, tem relação com a interpretação e o alcance de normas constitucionais que asseguram especial proteção a pessoas idosas. E, da ótica econômica, a tese a ser fixada afetará diretamente os regimes patrimonial e sucessório de maiores de 70 anos.[5]
No entanto, mesmo antes do julgamento pela Corte Superior, precipitou-se o STJ e editou Súmula estendendo o regime da separação obrigatória de bens à união estável constituída por que tem mais de 70 anos.[6]
O enunciado vai além, ao exigir a comprovação do esforço comum para afastar da incomunicabilidade os bens adquiridos durante o período da vida em comum. Esta exigência probatória afasta a presunção de comunicabilidade consagrada pelo STF, em súmula, editada nos idos de 1964, que determina a partilha dos bens adquiridos durante a união, sem questionar a efetiva contribuição de cada um do par na constituição do patrimônio.[7]
Ao vetar a divisão igualitária dos bens, afronta algumas normas do Código Civil: a que consagra a comunhão plena de vida instituída pelo casamento [8] e a que veda a intervenção de qualquer pessoa, de direito público ou privado a esta comunhão.[9] Mas há mais. Como não foi feita qualquer modulação a este novo entendimento, os prejuízos são enormes. Processos em andamento, em que esta prova não era exigida, estão sendo julgados sem permitir dilação probatória diante da mudança da orientação jurisprudencial.
Fora estes aspectos legais, há outro de natureza social que também foram afrontados. Ainda se vive em uma sociedade conservadora, machista e sexista, em que as questões de gênero continuam estabelecendo odiosas diferenciações. A responsabilidade pelo cuidado da casa e dos filhos ainda é das mulheres, tarefas às quais nunca foi atribuído valor econômico. Cabe lembrar que, sensível a esta realidade – que infelizmente persiste nos dias de hoje – de há muito foi reconhecida a divisão igualitária dos bens adquiridos durante os relacionamentos extramatrimoniais, quando ainda recebiam o nome de concubinato.
Mas há decisões outras que igualmente se mostraram desprovidas de sensibilidade, priorizando mais os aspectos econômicos e negociais, em detrimento de alguns direitos que gozam de proteção constitucional.
Uma delas diz com o direito fundamental de moradia, reconhecido como direito social.[10] Aliás, muito antes desta inserção, já era legalmente reconhecida a impenhorabilidade do bem de família.[11] A própria lei traz exceções. Entre elas a fiança concedida a contratos de locação.[12]
Decisões de vários tribunais chegaram a reconhecer como inconstitucional esta exceção. No entanto, este dissenso foi solvido pelo STF, sob o argumento de que a possibilidade de penhora do bem de família do fiador em locações comerciais, impulsiona o empreendedorismo, além de viabilizar a livre iniciativa e a celebração de contratos de locação mais favoráveis.[13]
Esta posição acabou ampliada, em julgado em que foi reconhecida repercussão geral.[14] Assim, passou a ser admitida a penhora do bem de família do fiador, tanto em contrato de locação comercial como residencial.[15]
No mesmo sentido manifestou-se o STJ,[16] albergando não só as locações comerciais como também as residenciais.[17]
Ou seja, o direito constitucional à moradia protege o locatário inadimplente, mas não o seu fiador, que por solidariedade e gratuitamente, referendou a locação que em nada o beneficia.
Mais uma decisão, no mínimo, inusitada.
O direito ao reconhecimento dos vínculos parentais é imprescritível. No entanto, os eventuais efeitos patrimoniais deles decorrentes, não.[18] A pretensão se sujeita ao prazo prescricional de 10 anos.[19]
Ou seja, proposta a ação de investigação de parentalidade, cumulada com petição de herança, sempre foi mais do que pacificado o entendimento de que o termo inicial da pretensão hereditária, era o trânsito em julgado do reconhecimento judicial da sua condição de herdeiro.
Só que o STJ deslocou o início do prazo prescricional para a data da abertura da sucessão. Deste modo, quando da morte do titular do patrimônio. Para isso invocou o princípio da actio nata: o termo inicial do prazo prescricional é a data do nascimento da pretensão resistida, o que ocorre quando se toma ciência inequívoca do fato danoso.[20]
Agora, quem se considera detentor de direito hereditário, mas não tem reconhecido documentalmente esta condição, precisa ingressar com a ação de petição de herança. Mesmo antes de propor a ação investigatória do vínculo de parentesco.
Esta breve mirada sobre algumas decisões das cortes superiores no âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões, visa conclamar todos a continuarem atentos à necessidade de se buscar, incansavelmente, uma justiça que dê a devida ênfase à responsabilidade ética do afeto. Esta bandeira do IBDFAM que temos que continuar desfraldando.
FONTE: IBDFAM